A noviça rebelde no divã
Vocês já se deram conta do quanto a noviça rebelde é infeliz e do quanto sua cantoria sem fim é uma tentativa quase esquizofrênica de negar isso?
A moça está lá no convento, mas não se adapta, é uma outsider... Em vez de cumprir as rotinas, vive fugindo para as montanhas, onde fica cantando e rodando sozinha – não é à toa que é expulsa. Quando isso acontece, vai trabalhar de babá, sem que nem se cogite que ela volte para casa. Ou seja, ou ela não tem pai, nem mãe, nem família, ou, o que é pior, a famíla existe mas a abandonou sem guardar qualquer espécie de contato. Por um motivo ou outro, ela foi largada no mundo e, uma vez acolhida no convento, termina por ser largada no mundo uma segunda vez, sem ter a quem recorrer. A caminho da casa dos von Trapp, ela canta "tenho confiança na própria confiança" – não resta nada do lado de fora para que ela confie. Assim, ela procura em si mesma algo a que se agarrar, e a canção segue com "tenho confiança em mim". Tanta música é a resposta que ela dá ao desamparo – é a ferramenta continuamente usada para tirar esperança do desespero.
Assim, os agudos ensandecidos de Julie Andrews ao fim de certas canções (I have confidence, Do Re Mi) e a ênfase missionária dada a algumas palavras (My favorite things) são extremamente adequados (na verdade, foi meu estranhamento diante da exasperação em canções aparentemente felizes que me levou a questionar o filme). Basta pensar cinco segundo nestas letras e percebe-se que nenhuma delas é realmente alegre: elas são receitas para superar situações desconfortáveis presentes. Cantar tão alto para encobrir a dor termina por ser a brecha que a revela.
Maria precisa da família que lhe falta. Neste sentido, é até natural que o convento não lhe servisse, por não preencher esta lacuna. Já na casa dos von Trapp, ela rapidamente assume o papel de irmã mais velha – demonstrando, simultaneamente, superioridade e cumplicidade, e ficando certamente mais próxima das crianças do que do patrão. Nesta posição, porém, ela não é aceita por ele, que já tem filhos em número suficiente, e cuja carência é de outra ordem (ele é viúvo). Assim, apenas transformando-se em mulher-mãe-esposa (saindo do lado das crianças para o lado dos adultos) é que ela encontra lugar junto ao barão, na casa, e na família.
O completar-se da vida de Maria diante do fato de conseguir uma família é marcado, na narrativa, por uma recapitulação dupla, unindo as pontas dos fios soltos, não resolvidos, daquela personalidade. Primeiro, a música que marca a nova situação, Something good, faz, já num momento avançado do filme, as únicas referências ao seu péssimo passado (wicked e miserable), que pode agora ser lembrado em paz (ela canta, com tranqüilidade, que "deve ter feito algo bom" para merecer seu presente). O casamento, que imediatamente se segue, é feito ao som do coral das freiras, marcando a reconciliação também com o convento.
Dito tudo isto, fica um pouco mais claro porque o filme é tão amado por senhoras virgens, gays sorridentes e desesperados em geral.
A moça está lá no convento, mas não se adapta, é uma outsider... Em vez de cumprir as rotinas, vive fugindo para as montanhas, onde fica cantando e rodando sozinha – não é à toa que é expulsa. Quando isso acontece, vai trabalhar de babá, sem que nem se cogite que ela volte para casa. Ou seja, ou ela não tem pai, nem mãe, nem família, ou, o que é pior, a famíla existe mas a abandonou sem guardar qualquer espécie de contato. Por um motivo ou outro, ela foi largada no mundo e, uma vez acolhida no convento, termina por ser largada no mundo uma segunda vez, sem ter a quem recorrer. A caminho da casa dos von Trapp, ela canta "tenho confiança na própria confiança" – não resta nada do lado de fora para que ela confie. Assim, ela procura em si mesma algo a que se agarrar, e a canção segue com "tenho confiança em mim". Tanta música é a resposta que ela dá ao desamparo – é a ferramenta continuamente usada para tirar esperança do desespero.
Assim, os agudos ensandecidos de Julie Andrews ao fim de certas canções (I have confidence, Do Re Mi) e a ênfase missionária dada a algumas palavras (My favorite things) são extremamente adequados (na verdade, foi meu estranhamento diante da exasperação em canções aparentemente felizes que me levou a questionar o filme). Basta pensar cinco segundo nestas letras e percebe-se que nenhuma delas é realmente alegre: elas são receitas para superar situações desconfortáveis presentes. Cantar tão alto para encobrir a dor termina por ser a brecha que a revela.
Maria precisa da família que lhe falta. Neste sentido, é até natural que o convento não lhe servisse, por não preencher esta lacuna. Já na casa dos von Trapp, ela rapidamente assume o papel de irmã mais velha – demonstrando, simultaneamente, superioridade e cumplicidade, e ficando certamente mais próxima das crianças do que do patrão. Nesta posição, porém, ela não é aceita por ele, que já tem filhos em número suficiente, e cuja carência é de outra ordem (ele é viúvo). Assim, apenas transformando-se em mulher-mãe-esposa (saindo do lado das crianças para o lado dos adultos) é que ela encontra lugar junto ao barão, na casa, e na família.
O completar-se da vida de Maria diante do fato de conseguir uma família é marcado, na narrativa, por uma recapitulação dupla, unindo as pontas dos fios soltos, não resolvidos, daquela personalidade. Primeiro, a música que marca a nova situação, Something good, faz, já num momento avançado do filme, as únicas referências ao seu péssimo passado (wicked e miserable), que pode agora ser lembrado em paz (ela canta, com tranqüilidade, que "deve ter feito algo bom" para merecer seu presente). O casamento, que imediatamente se segue, é feito ao som do coral das freiras, marcando a reconciliação também com o convento.
Dito tudo isto, fica um pouco mais claro porque o filme é tão amado por senhoras virgens, gays sorridentes e desesperados em geral.
5 Comments:
Achei Pauline Kael versão turbo.
não posso evitar, querido: lembre-se do verso de vinícius de moraes que diz "quem muito diz ser, não é" - que é a minha cara! - e veja o que você conclui dessa euforia da noviça...
(6)
genial (aqui é o gordo)
Em qual dos três grupos você se inclui??
Apesar de ser um "gay sorridente", neste caso prefiro me incluir nos "desesperados em geral".
;)
Postar um comentário
<< Home