quarta-feira, janeiro 24, 2007

Primeiro post da Gaivota


O que me tranqüiliza (um pouco) em tentar ler a arte é saber que qualquer proposta de leitura é necessariamente parcial e precária. E que se essa leitura for coerente e se sustentar efetivamente na obra (sem ser uma viagem pessoal), já é uma contribuição válida (mesmo que deixe muito de lado). Então, depois dessas desculpas prévias, aí vão algumas reflexões sobre “A gaivota” (no Teatro Piollin – minha querida fábrica do engenho Paul).

A peça abre com sua imagem mais forte – um homem ajoelhado, no único foco de luz da cena, que se sufoca ao colocar um saco de plástico na cabeça. Começar assim já nos pega pelo estômago; inevitavelmente toca, mesmo que pelo incômodo. Mas o interessante é perceber como, aqui, o sufocamento pelo saco se aprofunda e adquire nuances que servem como possível chave de leitura da peça. Apenas o sufocar já perturbaria pela iminência da morte. Mas aqui é preciso lembrar que a quase-morte por sufocamento também traz prazer sexual. Não à toa, existe gente que se masturba se sufocando ao mesmo tempo (vide aquele figurão britânico que morreu nessa brincadeira uns anos atrás). Então, nesse primeiro momento da peça, a tensão se estrutura numa busca simultânea de prazer e morte – desejo e abandono – criação e destruição – Eros e Tanatos.

Sendo a referência à morte a mais evidente, a presença do ventilador – ar, alívio – reforça o pólo oposto – Eros,vida – a assim fortalece a tensão existente ao equilibrar seus dois pólos. A situação é especialmente perturbadora pelo seu absurdo – tentar-se sufocar junto a um ventilador – e pelo fato de que não se consuma – o saco escapa num vôo belo como só os vôos de sacos plásticos costumam ser.

Pulemos então para um outro momento de impacto: o jogo de elástico entre os cinco personagens. Desfile, dança, brincadeira, o que quer que seja, o momento é definitivamente mágico e encantador. É mesmo impossível conter o sorriso diante do belo. Aqui, vemos um Jogo onde Eros claramente prevalece – enquanto vida e desejo que unem e movem os personagens pelo cordão. Mas não seria o cordão uma referência ao fio da vida tecido pelas Parcas, de tamanho certo e corte inevitável? Não seria, portanto, referência ao destino inevitável que se abaterá sobre os personagens desta tragédia? Não seria, assim, novamente a presença de Tanatos, agora disfarçado?

Bem... o post já tá grande demais e na verdade até agora só esbocei os categorias segundo as quais tentaria ler a peça. Pra acabar logo com isso, e trazer o texto a um parto prematuro, só quero então lembrar como a tensão esboçada (Eros e Tanatos) se apodera de toda a obra, nas múltiplas questões abordadas no texto: velhice e juventude; desejo e não-desejo; criação e morte. E como ela toma forma, ao longo da peça, essencialmente através do recurso do Jogo. Não só o jogo do elástico, mas o dos espelhos, dos cubos de gelo lançados como pedrinhas, pra não falar da inevitável referência à (Q)quadrilha com sua mudança de parceiros.

Pois bem: que jogo é esse? Por que o recurso ao jogo? Não é ele a própria expressão de Eros, servindo então como contraponto aos longos silêncios de Tanatos? Seria então, na peça, o uso do silêncio e do jogo a expressão formal do conteúdo de morte e vida, que é o próprio mote? Fica aberta esta possibilidade.

(A foto é do prédio de dia... lembrança de muito trabalho)

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

você me parece muito atento ao observar. deve ser bem crítico também! isso mete medo, ein? hahaha!

juliano, meus parabéns. eu queria assistir a arte com esse olhar. pelo menos mais vezes! tenho a impressão de que eu fico muito "doído" como espectador, não sei. nem sei se "doído" é bem o que eu quero dizer. acho que eu acabo por enxergar as coisas mais pela minha própria vivência... talvez num olhar não tão abrangente e criativo como esse seu sugerido pelo texto.

...texto brilhante. ;]

quarta-feira, janeiro 24, 2007 11:43:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

bem, na verdade ser crítico fica tão próximo do ser atento, que o "também" do 1º parágrafo ficou tolo! hehehe!

abraço.

quarta-feira, janeiro 24, 2007 11:45:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

err... se bem que... tem muita gente por aí atenta sem ser tão crítica, não é verdade, minha gente? kkkkkkkkk!

deixa eu ir, se não vou ficar remendando e remendando!

quarta-feira, janeiro 24, 2007 11:46:00 PM  

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