domingo, maio 07, 2006

Canaviais e sapatos


Quando estive em João Pessoa pela última vez, estava havendo um encontro de Ciências Sociais na universidade e os meninos foram lá apresentar Veríssimo Prato Feito. Eu fui junto. Antes da peça deles, tivemos de esperar pela apresentação de um grupo folclórico (na falta de melhor nome) de algum bairro distante de João Pessoa.

Deu tudo errado nesta primeira apresentação. Não tinha ninguém (eles queriam que os poucos gatos pingados participassem), a luz e o lugar não ajudavam, os números foram repetitivos, e mesmo as músicas que poderiam ser interessantes se ressentiram muito mesmo da falta de melhores vocais e um instrumental melhor... um desastre. Mas mesmo assim houve algo que me tocou: as letras, que repetidas hoje por uma comunidade urbana, continuavam falando de um mundo rural, de canaviais, passado mas de certa forma ainda vivo. Talvez seja minha sensibilidade de observador sempre estrangeiro, mas eu senti como se aqueles pais, avós, bisavós, que criaram aquelas canções de trabalho, de lazer, permanecessem inteiros, com sua vida, suas coisas, seus afetos e seus cuidados, naqueles fragmentos mal-executados.

Aí eu li hoje, pruma aula de amanhã, uma coisa que Heidegger falou de uns sapatos pintados por Van Gogh, em A origem da obra de arte:

"Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabahador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra o vento agreste. No couro, está a humidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai (...) Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa."

Essa foi a minha experiência daquele momento. Sem tirar nem pôr. E eu fiquei todo embasbacado de como ele conseguiu escrever isto décadas atrás só pra definir o que eu sentiria naquela noite.

2 Comments:

Blogger O nariga falou said...

Quem? (li o post mas ainda não sei quem foi ele)

terça-feira, maio 09, 2006 12:29:00 AM  
Blogger Juliano said...

Heidegger é a pedra do meu sapato, o pesadelo das minhas noites, o Amaro da minha aula de projeto...

quinta-feira, maio 11, 2006 12:18:00 PM  

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