sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Medula (um dos textos para Cê, quando da sua partida)

Cecília acordou e sentou. Tirou o sorriso de dentro do copo com água que lhe ficava na mesa da cabeceira. Conseguiu levantar-se na segunda tentativa, esvaziou o penico no vaso sanitário, trocou a camisola pelo vestido, foi à cozinha fazer o café preto sem açúcar: a casa andava muito silenciosa desde que os meninos tinham ido embora. Restava, agora, sentar diante da televisão, ou do rádio, ou da janela, ou do álbum, ou do livro... arremedos de portas de um mundo para o qual não mais passava.

Ouviu um pingado. Se fosse a torneira vazando, poderia esperar. Mas o continuar dos plics começou a impacientá-la; e com aquela resignação de quem já enterrou alguns filhos, procurou pela casa toda. O barulho parecia vir do chão. Deitou-se nele, encostou o ouvido bom no ladrilho: sim, o pingado vinha de baixo do chão, mesmo sem a casa ter porão. De repente, uma voz conhecida disse quem me compra um jardim com flores? Asssustada, ergueu-se como não fazia havia vinte anos, arrastou uma poltrona pra cima do ladrilho e fingiu que nada acontecera.

Quando os pingados entraram pelo quarto dia (e ela tinha atravessado três noites em claro), Cecília deu-se por vencida: arrastou a poltrona, tirou o ladrilho do chão com uma chave de fendas, e, surpresa, encontrou um imenso vazio debaixo de seu lar. Um vazio de onde vinha uma voz que perguntava o sonho que a menina sonha está no sonho ou na fronha? Tirou outro ladrilho e ouviu Arabela abria a janela. E depois de um seis ladrilhos tirados (via uma verdadeira caverna sob a sala de visitas), precipitou-se para baixo atravassando os sons: o último andar é mais bonito, do último andar se vê o mar.

Caíra num mar de dentro, numa lagoa de luz própria, num azul tão vivo que quase calava o coral Essa menina tão pequenina quer ser bailarina. E nadava supreendida com o próprio fôlego, com a falta de frio, com tanto sentir-se em casa, agora tão longe dela. Disse a si mesma: a espuma escreve, com letras de alga, o sonho de Olga, e riu-se divertida do tempo em que brincava, assim, com sons e imagens e pessoas. Quis nadar fundo, sentir a água acordando a pele, simplesmente ir, atrás da pergunta (e não da resposta, porque desta não precisava): de que tamanho seria o rebanho?


Voltara a ser a sereia que tinha esquecido; e se por um momento ponderou voltar, para um adeus aos ladrilhos, à poltrona, à vizinha e ao sobrinho-neto das visitas mensais, logo transformou isso num sorriso, piscou os olhos lentamente, e nadou para o mar oceano.